18/01/2013

Sociologia do Corpo como linha de pesquisa

Para  treinar a problematização e a crítica da sociedade que nos rodeia, conscientes da necessidade de rigor científico, será conveniente abordar os temas de trabalho seguindo uma linha de pesquisa comum a todos grupos, que lhes confira alguma unidade teórica, estimulando o debate e orientando a pesquisa.  O “corpo” encontra-se presente em todas as interacções sociais, embora raramente seja explicitamente referido em Sociologia. Assim, este apresenta-se como uma ferramenta útil para problematizar e repensar as relações sociais, que através do mesmo se procurarão objectivar, impondo disciplina metodológica à imaginação sociológica que se pretende simultaneamente fértil e disciplinada.

A Sociologia do Corpo (BRETON) constitui-se como uma perspectiva dedicada à compreensão dos fenómenos humanos, sociais e culturais. A sua adopção como linha de pesquisa significa a mobilização desta teoria para a descoberta de um mundo simbólico, objecto de representações e imaginários. Apresentam-se abaixo alguns aspectos desenvolvidos nesta obra.

As ambiguidades do referente “corpo”. De que “corpo” se trata? – Qualquer questionamento sobre o corpo requer a enunciação, elucidação, construção daquilo que se subentende. O corpo não é uma natureza. Não se vêem só corpos. O que vê são homens e mulheres. Os sociólogos terão de construir a sua perspectiva de observação, conscientes de que também o referente se encontra envolvido num véu de representações (Breton, 1992:24).

Representações que constroem o “corpo” (idem:26):
- Anatomia, conhecimento médico. Observam-no como realidade objectiva, independente do homem, ie., um mecanismo com os órgãos e funções. Os médicos especialistas tratam ainda apenas de subconjunto destes, organizados em “aparelhos”;
- A cultura popular identifica o corpo com a carne, a região visível, uma pele que transporta outros componentes;
- A pessoa. Quando mostramos o que o corpo faz, capacidades e seus limites do homem, em interacção com os outros e a natureza.

Nas sociedades ocidentais a representação dominante do corpo é a da medicina, caracterizando uma sociedade individualista que separa o corpo da pessoa. A palavra “corpo” nem é aplicada exclusivamente a humanos, podendo referir-se a qualquer estrutura: “Tudo o que ocupa espaço e constitui unidade orgânica ou inorgânica” (DLPO).

O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas uma construção social e cultural. Nas sociedades ocidentais o destaque dos indivíduos relativamente à comunidade resulta da sua transformação social e cultural, que o coloca em evidência para o distinguir dos outros, observando Durkheim que “é preciso um factor de individualização, sendo o corpo que desempenha esse papel”.

O corpo é uma estrutura simbólica (idem:29). O conhecimento biomédico é a sua representação oficial, mas não recolhe a unanimidade nem dos seus especialistas, pois estes frequentemente indicam “medicinas paralelas” ou “alternativas”, visando o alívio do sofrimento físico: o ioga, a medicina chinesa, a acupuntura, etc. que transportam outras representações do corpo. Compete à Sociologia compreender e explicar esta estrutura simbólica, descrevendo as suas representações, os imaginários, os desempenhos e os limites infinitamente variáveis conforme as sociedades.

O corpo da modernidade, estudado pela Sociologia, resulta do advento do individualismo nas sociedades capitalistas, que identifica o corpo como um componente autónomo da própria pessoa. Este é o elemento que estabelece a fronteira entre o espaço social e o espaço de soberania individual. Nas sociedades tradicionais, de dominante comunitária, na qual o estatuto da pessoa se subordina ao colectivo, diluindo-se no grupo, esta cisão não faz sentido.

O corpo não existe em estado natural, sempre está compreendido na trama social de sentidos, mesmo em suas manifestações aparentes de insurreição, quando provisoriamente uma ruptura se instala na transparência da relação física com o mundo do actor (dor, doença, comportamento não habitual, etc.).

A tarefa da Sociologia (idem:32)
A Sociologia, cujas pesquisas têm no corpo seu fio condutor, não deve nunca esquecer da ambiguidade e da efemeridade de seu objecto, a qualidade que possui de incentivar questionamentos muito mais que de constituir fonte de certezas. Deve sempre estudar o comportamento do actor em função da situação, para não ceder ao dualismo que invalidaria a análise. O significante "corpo" funciona, para a sociologia, como um mito no sentido de G. Sorel: ele cristaliza o imaginário social, provoca as práticas e as análises que continuam a explicar sua legitimidade, a provar de maneira incontestável sua realidade. Mas o sociólogo não esquece que ele próprio vive num mundo de categorias mentais inseridas na trama da história social, e, de modo geral, na trama da história das ciências.

De modo mais específico, o qualificativo "corpo" que limita o campo dessa sociologia é uma "forma simples" no sentido de André Jolles: "Todas as vezes que uma actividade do espírito conduz a multiplicidade e a diversidade do ser e dos acontecimentos a cristalizar-se para adquirir uma certa forma, todas as vezes que essa diversidade, percebida pela língua em seus elementos primeiros e indivisíveis e transformada em produção da linguagem, puder ao mesmo tempo querer dizer e significar o ser e o acontecimento, diremos que ocorre o nascimento de uma forma simples" cujas actualizações sociais e culturais é preciso conhecer.

O “corpo" é uma linha de pesquisa e não uma realidade em si. É preciso então marcar o distanciamento da sociologia de Durkheim, segundo a qual o corpo é estritamente redutível ao biológico. O conhecimento biomédico representa uma espécie de verdade universal do corpo que uma parte das sociedades humanas não conseguiu adquirir, como provam os numerosos curandeiros das nossas tradições rurais. Etnocentrismo elementar ao qual cedem, no entanto, numerosos pesquisadores.

A independência do discurso sociológico (idem:34)
A medicina e a biologia propõem um discurso sobre o corpo aparentemente irrefutável, culturalmente legitimo. Mas, tanto uma quanto a outra compartilham um conhecimento de outra categoria. Detêm, de certa forma, um conhecimento "oficial", ensinado na universidade, isso quer dizer que visam à universalidade e sustentam as práticas legítimas das instituições médicas ou de pesquisa. No entanto, esse monopólio da "verdade" é disputado pelas medicinas que repousam sobre as tradições populares, variáveis conforme as culturas, ou sobre outras tradições do conhecimento (acupuntura, homeopatia, quiropraxia, medicina ayuvérdica, etc.) que por sua vez se apoiam em outras representações do corpo humano.

O sociólogo não pode então tomar partido nesses conflitos de legitimidade ou nessas coexistências paradoxais que lembram justamente o carácter sempre social e cultural das obras humanas; antes de tudo, tem como tarefa tornar perceptíveis os imaginários do corpo presentes na medicina moderna ou nas outras medicinas; assim como apreender os procedimentos variados usados nas curas e compreender as virtudes apregoadas.

A sociologia aplicada ao corpo distancia-se das asserções médicas que desprezam as dimensões pessoal, social e cultural nas percepções do corpo. Tudo se passa como se a representação anatomofisiológica tivesse que escapar da história para entregar-se ao absoluto.

Uma Sociologia do corpo? (idem:35)
Uma "sociologia do corpo", lúcida em relação às ameaças que pesam sobre ela, mas que ao afastá-las descobre um continente a ser pesquisado, quase inexplorado, onde a inteligência e a imaginação sociológica do pesquisador se podem desenvolver. Essa via central da pesquisa pode, por outro lado, alimentar-se avidamente das análises levadas a cabo em outros lugares e para outras finalidades.

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